Na semana que passou, tivemos as tristes perdas de duas figuras maiúsculas da cultura brasileira: o poeta e filósofo Antônio Cícero e o documentarista Vladimir Carvalho.
Membro da Academia Brasileira de Letras, Cícero era um personagem conhecido pela abrangência e importância de sua produção intelectual e artística – poesia, filosofia, crítica e música, incluindo a coautoria de grandes sucessos, como Fullgás, com sua irmã Marina Lima, e O Último Romântico, composta por ele e Lulu Santos.
Vladimir era mais conhecido no círculo do cinema e especialmente do documentário brasileiro. Paraibano radicado em Brasília, dirigiu obras seminais do cinema documental brasileiro como No País de São Saruê, em que retrata a seca no seu estado natal, e Conterrâneos Velhos de Guerra, sobre a dura vida dos operários que construíram Brasília.
Como observou o também documentarista João Moreira Salles, “se o gênero é hoje a casa de muita gente, em boa parte isso é obra dele. Vladimir foi dos raríssimos cineastas de sua geração que não sentiu a necessidade de enveredar pela ficção. Muito antes de o documentário ser um gênero respeitável entre nós, ele já se dizia documentarista, afirmando a autonomia da não-ficção. Essa tomada de posição ajudou o documentário a se tornar um destino, não uma escala”.
Mais que figuras maiúsculas da cultura nacional, entretanto, Antônio Cícero e Vladimir foram figuras humanas imensas, daquelas que encarnam o lado mais luminoso de nossa espécie, estabelecem parâmetros admiráveis de caráter e nos oferecem exemplos de vidas dignas.
Não conheci Cícero pessoalmente, mas abundam os testemunhos a respeito de seu modo de ser e de seu caráter. Tive, entretanto, o privilégio de alguns breves encontros com Vladimir Carvalho.
Para quem sabia de sua história e o admirava, era sempre um espanto conhecê-lo pessoalmente e perceber sua enorme simplicidade, humildade e generosidade. Vladimir escutava com a mesma atenção a alta autoridade e o calouro da faculdade de cinema que o procurava cheio de ansiedade por falar com um mestre. Respondia a tudo com um riso franco de cumplicidade e era capaz da mais fina ironia fruto de um olhar sensível e sempre atento ao mundo.
Um amigo certa vez participou de um júri de festival de cinema a seu lado. Quando as luzes se acenderam, após mais uma sessão de um filme de arte, Vladimir o puxou pelo braço e segredou: “Você entendeu alguma coisa? Eu não entendi nada. É sempre minha mulher quem me explica essas coisas”.
Não era uma declaração ácida. Era uma afirmação genuína, um tipo de ironia, dirigida a si mesmo mais que à obra, de que são capazes apenas aqueles que, por sua humildade, não têm problema de se perceberem insuficientes. O filme não era ruim. Fora ela quem não conseguira entendê-lo – ou não…
Vladimir não se incomodava que o levássemos a tiracolo para reuniões com autoridades da cultura ou parlamentares em Brasília para defender políticas em prol do audiovisual. Ele mesmo muitas vezes pouco entendia dos assuntos em pauta, mas sabia ser uma espécie de amuleto que colocava peso em nossas demandas simplesmente por sua autoridade moral – e que sempre seduzia e cativava a todos com sua simpatia, tornando muito mais fácil o atendimento de nossas demandas.
Vladimir e Antônio Cícero foram duas figuras a quem a imensa inteligência e sensibilidade tornaram simples e afetuosos, sem qualquer traço de vaidade ou arrogância. A generosidade, a abertura e a doação ao outro foram a marca de duas vidas dignas que parecem ter valido a pena serem vividas.
No caso de Cícero, fica ainda a dignidade do gesto final, da escolha pelo suicídio assistido, não em um arroubo de loucura ou desespero, mas na resignação altiva, reservada a poucos, de quem já não desejava viver diante das trágicas imposições do Alzheimer, e que decidiu sair pela porta da frente.
Farão enorme falta. Ficam os filmes, os poemas e sobretudo os exemplos daquilo que mais merece ser chamado de humano.